quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Quais são os PECados?

A PEC 55 (versão do Senado da PEC 241, aprovada na Câmara), ou “PEC do Teto”, ou ainda “PEC do Fim do Mundo”, com vem sendo tratada por movimentos contrários aos seus ditames, trata dos limites dos gastos federais. Muito já foi dito sobre a PEC 55 e, por isso mesmo, vou me ater a pontos que considero pouco esclarecidos ou abordados. Pra começar, divido a abordagem em três aspectos: o da legitimidade; o da eficácia; e o dos efeitos colaterais. O primeiro aspecto é o que move boa parte dos movimentos contrários à PEC, uma vez que consideram ilegítimo o governo de plantão para a adoção de tal instrumento. Por certo que o governo atual atua num limbo de legitimidade, se considerarmos o objeto do impedimento que o guindou, analisando-o sobre o prisma do pertencimento: ora, se o vice-presidente é eleito junto ao presidente (como gostam de alegar seus apoiadores), também deveria ser deposto junto àquele por desvarios do governo do qual participa. Mas isso é uma vicissitude da legislação brasileira, que deveria ser objeto de reformulação política. O fato é que, sendo a PEC 55 um instrumento limitador da ação dos governantes para além de um mandato, apraz que fosse proposta em uma conjuntura democrática mais substantiva, da qual estamos muito longe. Neste sentido, a propaganda oficial, que compara a gestão orçamentária da nação à de uma família erra tanto na estética quanto no conteúdo. Afinal, até mesmo as famílias se endividam (gastam além do que ganham), ora por motivos fúteis (que é o que se quer evitar), ora por argumentos muito úteis (o investimento na educação dos filhos, por exemplo). E um país que tem pressa em alcançar um nível mais razoável de desenvolvimento utiliza desta possibilidade de endividamento a seu favor: a história econômica tem inúmeros exemplos bem sucedidos neste sentido. Já abordando o segundo ponto, o da eficácia, é certo que o instrumento não será eficaz para o atual mandato, o qual se locupleta de um endividamento autorizado, e não auditado (os tais R$170 bilhões), que pode ser corrigido pela inflação atual, a qual se situa no pico. Ou seja, até 2018, a eficácia da PEC 55 é nula, se o objetivo é limitar a liberdade orçamentária deste atual governo. Passará a ter eficácia a partir do próximo mandato presidencial (provavelmente eleito, diga-se de passagem, e, portanto, de maior legitimidade), exercendo limitação vigorosa sobre aquele  e, mais ainda, sobre o governante do período posterior (2023-2026). Adentramos, pois, o terceiro ponto, o dos efeitos colaterais. Ocorre que a PEC 55 ao mesmo tempo em que estabelece um teto de gastos, desvincula despesas com saúde e educação. Com população crescente e necessidades de avançar em políticas públicas inclusivas, tal desvinculação joga estas demandas para o fosso das disputas de poder do nosso famigerado congresso nacional. Cabe lembrar que, ao menos no âmbito da Educação, há metas progressivas de aumento do dispêndio federal e de resultados em avaliações escolares internas (ex.: IDEB) e externas (ex.: PISA)*, referendadas no Plano Nacional de Educação, que ficam comprometidos desde já, interrompendo uma trajetória de aprimoramento do ensino. O discurso do governo é de que a sociedade poderá lutar pela manutenção e até pelo aumento proporcional destas despesas, mas esquece de dizer que, a considerar a conjuntura política atual, os lobbies privilegiam outros tipos de gastos, muito distantes do altruísmo político. Certamente as benesses fiscais e o financiamento de grupos e atividades privadas com maior poder de pressão política (a chamada Bolsa Empresário tem o peso orçamentário das despesas com saúde+educação+bolsa família e, no entanto, não há ações no sentido de um contundente enxugamento nestas despesas), além da fatia mais influente do funcionalismo público (incluindo a magistratura – já contemplada – e setores como a receita – diretamente associada com capacidade de arrecadação – e a polícia federal – por razões hoje mais óbvias que nunca) exercerão pressão sobre um orçamento cada ano mais apertado, comprimindo os elos mais fracos deste sistema. Os cortes orçamentários atuais já refletem esta queda de braço: na Educação já foram cortados recursos do FIES, Ciências sem Fronteiras, além de programas de incentivo à C&T; na Saúde se vislumbram cortes no SAMU e no Farmácia Popular. Ainda neste contexto, alega-se que a Previdência seja deficitária (isso merece outro post!) e passa-se a exigir sua reforma, sob o pretexto de que ela pouparia recursos que poderiam ser alocados à saúde e educação. Ou seja, se a PEC 55 é aprovada e a reforma da Previdência sofre algum atraso, a pressão sobre o orçamento da saúde e educação atingiria um pico e levaria o sistema ao caos. Associado a este cenário, a atual desconstrução do legado dos governos petistas (insisto sempre que há um importante legado, especialmente na educação e na ciência/tecnologia – áreas sobre as quais posso falar com propriedade – do qual não deveríamos abrir mão) pode colocar a perder avanços indispensáveis para um país que pretende estar na lista dos desenvolvidos em algum momento de sua trajetória futura. Ora, se não se pretende reduzir as despesas com educação e saúde, para que a desvinculação nestes setores? Outro efeito colateral se fará notar nos próximos anos no serviço público em geral, em função do congelamento dos concursos/admissões e planos de carreira, com consequências ruins e boas, dependendo do tempo e do ponto de vista. Num primeiro momento, onde hoje há distorções (e elas estão aí aos montes), estas serão exacerbadas, com piora dos serviços públicos prestados, especialmente nos primeiros anos pós-PEC. Por outro lado, as pressões por orçamento podem fazer com que estas distorções sejam minimizadas no longo prazo, na medida em que, para corrigi-las, o governo terá rever os cargos, salários e carreiras, de modo geral. Se houver altruísmo, esta mudança pode ser boa, caso contrário, pode gerar aberrações no setor público, num nível muito maior do que temos hoje, em função da desigualdade de poder entre as diversas carreiras de estado. 

Em suma, juntando o pontos, temos um governo no limiar da (i)legitimidade propondo austeridade não para si, mas para outros e tolhendo possibilidades de governos posteriores eleitos em alavancar desenvolvimento a partir de endividamento interno, seja este responsável ou não. É preciso austeridade? Então: i) que esta seja exercida agora e não apenas nos futuros mandatos; ii) que não desvincule despesas com saúde e educação; e iii) que, antes, se promova ajustes nas carreiras de estado, corrigindo distorções e aumentando a eficiência da máquina pública. 

* nota: para os que não sabem, o Brasil, embora ainda muito atrás no ranking geral, foi um dos países que mais obteve avanços na avaliação de matemática do PISA, na década 2002-2012 (vide https://www.oecd.org/pisa/. Os resultados do exame trianual do PISA, de 2015, serão divulgados no dia 06/12/2016).