terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Agência Ambiental do Vale do Paraíba: a precarização do licenciamento ambiental no estado de SP


A aplicação do princípio da subsidiariedade, pelo qual questões políticas ou sociais de uma sociedade deveriam ser resolvidas na instância mais local de sua organização, com capacidade para tal, é um desígnio natural de uma sociedade madura. Porém, o açodamento ao adotar tal princípio, especialmente em relação à capacidade da instância local em solucionar os problemas e conflitos no processo decisório, pode levar a ações deletérias para a localidade e até para a sociedade como um todo.

Todo o transcurso da concepção e implantação da Agência Ambiental do Vale do Paraíba apresenta indícios claros de tal açodamento, consolidado com a transferência, pelo órgão licenciador estadual, das faculdades do licenciamento municipal para o Consórcio Intermunicipal criado para este fim. A motivação declarada, de 'agilizar' o licenciamento ambiental, por si só denota um possível trade off entre a velocidade e a robustez das análises ambientais, com prejuízo da segunda qualidade. 

Uma condição essencial para que os municípios possam gerir seus processos de licenciamento ambiental é a existência de um Conselho Municipal de Meio Ambiente no qual a participação social é representativa da sociedade, com equiparação quantitativa ao poder público e representantes independentes, que possam expressar de fato a opinião de suas bases representadas. Não é o que acontece com o Conselho Municipal de Meio Ambiente de São José dos Campos (COMAM), município que assumiu as articulações para a criação da Agência Ambiental do Vale do Paraíba. Um exemplo da distorção representativa naquele Conselho é a participação, como Instituição de Ensino e Pesquisa (Sociedade Civil), da Associação Parque Tecnológico de São José dos Campos, uma organização que mantém contrato de gestão com a Prefeitura Municipal, da qual depende, e tampouco exerce atividades próprias de ensino e pesquisa. Aliás, a ingerência do executivo municipal sobre o COMAM foi objeto, em passado recente, de pedido de exoneração coletivo dos representantes das instituições de ensino e pesquisa (UNESP, INPE e ITA), conforme relatado pela mídia local[1].

Na organização estabelecida para a Agência Ambiental, há uma clara dominância do poder público municipal, o qual define todos os principais cargos de direção, não obstante ocupados por comissionados, em detrimento de funcionários públicos efetivos. A Agência, portanto, não tem qualquer independência em relação ao poder público, do qual origina a maior parte dos objetos de licenciamento. Também os analistas da Agência Ambiental foram contratados em regime que inibe a autonomia em suas análises.

Outro aspecto importante é a publicidade dos dados e informações associadas aos processos de licenciamento. Idealmente, tais documentos deveriam estar disponíveis para os cidadãos interessados, de maneira a permitir um mínimo controle social sobre tais processos. No entanto, a plataforma digital da Agência privilegia o usuário empreendedor, parte interessada no processo, e não há disponibilidade de documentos e informações relevantes para o público em geral. Estas, de acordo com as informações divulgadas, só são encaminhadas sob demanda específica, a qual está sujeita ao poder discricionário da Diretoria da Agência, dificultando a obtenção de informações pelo público.

Estes fatos evidenciam a precariedade do licenciamento ambiental conduzido pela Agência Ambiental do Vale do Paraíba, e ensejam que diversos e urgentes aprimoramentos sejam necessários para que o papel subsidiário dos municípios seja exercido a contento para a sociedade. 

Neste contexto, é absolutamente temerário que uma decisão do CONSEMA outorgue aos municípios do Consórcio Público Agência Ambiental do Vale do Paraíba a faculdade de licenciamento de empreendimentos e atividades de ALTO IMPACTO ambiental.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Cidades podem fazer muito mais para reduzir alagamentos

Texto em coautoria com Daniela Rizzi e Cecília Herzog, publicado na Folha de São Paulo, seção Tendências e Debates, de 24/08/2023.  

Link p/ acesso ao texto da Folha, na íntegra:

https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/08/canalizar-corregos-e-pouco-para-reduzir-alagamentos.shtml


A Prefeitura de São Paulo anunciou um amplo programa de investimentos para canalizar 57 córregos do município até o final de 2024. O motivo é nobre: reduzir os impactos das chuvas em áreas urbanizadas.

Considerado o maior programa de canalização de córregos já realizado até hoje na capital, com aporte de R$ 630 milhões, o plano promete uma série de benefícios para a população. Mas será que as obras em curso são, realmente, a melhor escolha para a cidade?

Córrego Zavuvus, na zona sul de São Paulo. Divulgação/TCM-SP

Nosso imaginário ainda é dominado pela necessidade de investimento em grandes obras de engenharia convencional para solucionar os problemas urbanos. Contudo, foram esses projetos que potencializaram vulnerabilidades por tentarem controlar os processos e fluxos naturais, com impermeabilização do solo e canalização dos cursos d’água.

Em contraponto a essa lógica, intervenções que respeitam os processos e fluxos naturais podem trazer ampla gama de benefícios. Projetos com Soluções baseadas na Natureza (SbN) têm se mostrado mais eficazes na mitigação de inundações, como também economicamente mais vantajosos e com melhoria na qualidade de vida e bem-estar dos moradores. São ações para proteger, conservar, regenerar, usar de forma sustentável e gerir ecossistemas terrestres, de água doce, costeiros e marinhos naturais ou modificados, abordando desafios sociais, econômicos e ambientais de forma eficaz e adaptativa, ao mesmo tempo em que proporcionam bem-estar humano, serviços ecossistêmicos, resiliência e aumento da biodiversidade.

 




Em lugar de canalizar córregos, impondo-lhes margens rígidas, técnica que já se mostrou inócua em diversas situações, seria muito mais benéfica a mudança de paradigma, com a criação de áreas naturais para amortecimento do escoamento superficial, com o aumento da capacidade de detenção, retenção e infiltração das águas pluviais. Os cursos d’água podem —e devem— ser requalificados e "renaturalizados" sempre que possível.


 

Enterrado sob o asfalto, na maior parte de seu percurso, o Córrego das Corujas aparece na Vila Madalena, em trecho aberto na praça batizada com o mesmo nome. Zanone Fraissat/Folhapress

As Soluções baseadas na Natureza também contribuem para a saúde das pessoas e dos ecossistemas locais, melhoram a qualidade do ar, da água e do solo e amenizam a temperatura urbana, com a mitigação do "efeito ilha de calor". Portanto, investir em SbN também é uma estratégia eficiente para adaptação às mudanças do clima.

Um ponto positivo do plano anunciado pela Prefeitura de São Paulo é a criação de parques lineares ao longo do leito dos rios. Isso representa uma oportunidade ímpar para adotar infraestrutura natural em áreas multifuncionais, com a incorporação de espaços verdes de lazer, atividades físicas e recreativas para todos os moradores.

É urgente que as autoridades municipais considerem a adoção de SbN em seu planejamento e execução de projetos, principalmente relacionados aos rios e córregos urbanos, em macro e microdrenagem. Ao fazer isso, a cidade de São Paulo poderá se tornar um exemplo de inovação sustentável e colaborar para a construção de um futuro mais resiliente e saudável para seus habitantes, favorecendo a natureza e a biodiversidade urbana, também com impactos positivos para a economia.

quarta-feira, 2 de março de 2022

Ucrânia, neonazistas, economia e narrativas: invertendo pólos.

Ao me posicionar de forma contrária à invasão russa sobre a Ucrânia, recebi críticas à esquerda e à direita, num alinhamento que chega a ser paradoxal. As do campo da “direita” parecem se associar simplesmente à alegoria da visita de Bolsonaro a Putin: muitos de seus eleitores simplesmente passaram a refletir certa simpatia ao presidente russo e passaram a validar suas razões, quaisquer que sejam estas. Já as do campo da “esquerda” faziam alusão ao discurso de Putin, sobre realizar missão na Ucrânia para “desnazificar” o país. Prefiro argumentar em torno desta, afinal, rechaçar os neonazistas (e todo e qualquer grupo cujos princípios pressupõem a supremacia de uns ou a extinção de outros) em todo lugar é ato civilizatório. Mas pense se os EUA resolvessem invadir o Canadá para eliminar os neonazistas canadenses (que sabemos que existem até pelas fotos nas manifestações antivax)?

A charge do Junião é de 2014 e já criticava a visão simplista 
do conflito entre as superpotências em relação à Ucrânia

Sim, há uma histórica associação entre a Ucrânia e o nazismo, especialmente em função do apoio dado às tropas alemãs em algumas localidades ucranianas na 2ª guerra mundial. Apoio este que, em tempos de guerra e tendo esta população local sido submetida a restrições de todo tipo antes mesmo das disputas territoriais, pode ser interpretado até como uma bandeira salvacionista, significando um lampejo de independência para muitos. Tal “filme”, aliás, foi visto em diversos outros fronts de batalha mundo afora. 

No entanto, muito tempo se passou e embora os símbolos utilizados atualmente possam remeter ao passado, é muito difícil argumentar que os grupos neonazistas e fascistas da Ucrânia de hoje tenham raiz no apoio às tropas alemãs na 2ª guerra mundial. Tais grupos hoje se proliferam e crescem organicamente em todo o mundo, inclusive no Brasil. A propósito, traçando um paralelo, em terras tupiniquins parte das células neonazistas e fascistas está associada às milícias e grupos paramilitares cada vez mais armados, em função da atual política armamentista, e alavancada por esta facilitação do acesso a armamentos e munições (tema para outro texto). 

Voltando ao caso da Ucrânia, temo porque Putin não demonstra ter freios humanitários. Ele já vinha desgastado internamente e a economia russa não tem acompanhado as dos EUA, China e as principais economias da União Europeia, embora a Rússia se mantenha como uma das mais importantes potências bélicas do mundo. Ao mesmo tempo, é cara para a Rússia a perda de poder (ex.: nas negociações em torno dos dutos de gás natural russo que passam pela Ucrânia) numa possível aproximação da Ucrânia com o ocidente. A invasão, neste contexto, representaria um escape, uma cortina de fumaça que lhe poderia render até um alívio na popularidade em queda, se conseguisse insuflar o nacionalismo junto à população (russa e ucraniana pró-Rússia). 

Portanto, a questão é muito mais complexa do que o maniqueísmo de “direita” e de “esquerda” quer nos fazer acreditar. No fim do dia, não há “santos”: esta é uma guerra geopolítica onde superpotências bélicas e econômicas jogam com seus interesses no tabuleiro e as populações nos campos de batalha (de diversos países, inclusive, claro, os invadidos pelos EUA, com apoio da OTAN, e agora a Ucrânia) sofrem as consequências, quer seja perdendo vidas, quer seja passando privações ou tendo que se refugiar em terras estranhas. Enfim, essa guerra é lastimável e seus resultados, para todo o mundo, podem ser imprevisíveis.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

São José dos Campos (de Cerrado)... Ou São José dos Extintos Campos ?

A criação de um Parque Natural Municipal, em diversas situações, seria motivo de grande alegria para a população. Este seria o espírito esperado de um anúncio como o da criação do Parque Natural Municipal do Cerrado em São José dos Campos/SP. No entanto, a iniciativa gera muito mais preocupação do que alegria.

Em primeiro lugar, porque tal parque está sendo anunciado sem que esteja concluído o Plano Municipal de Mata Atlântica e Cerrado (PMMAC), o qual deveria estabelecer diretrizes para a conservação destes ambientes no município. Inclusive qual seria o regramento para estabelecer zonas de amortecimento e corredores a partir dos remanescentes de Mata Atlântica e Cerrado. O PMMAC teve sua elaboração iniciada no Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) em 2019, mas até o momento a Prefeitura não apresentou a versão final, para debate público.

Voltando alguns passos na história recente, esta mesma gestão SUPRIMIU, por ocasião da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (vulgo Lei do Zoneamento, promulgada em 2019), 1.036 hectares de Zonas de Proteção Ambiental na mesma região. Esta área garantia minimamente a proteção de mais de 500 hectares em remanescentes de Cerrado (incluindo os famosos “campos”), além de estar toda inserida sobre área de recarga de aquíferos, cuja preservação é fundamental para a garantia da segurança hídrica na cidade. Sim, estes são os números! Suprimiu 1.036 hectares de proteção e agora propõe proteger um pequeno recorte de 30 hectares.

Mas isso não é tudo. Um dos principais fatores de proteção para a área a ser criada é o regramento dos usos em seu entorno, a chamada Zona de Amortecimento. Esta é tão importante quanto o parque, ainda mais quando se trata de uma área de proteção tão pequena para uma mostra tão preciosa do Cerrado joseense. A proposta apenas aponta algumas possíveis diretrizes, postergando a definição da zona de amortecimento. Dado o grau de ocupação atual na região e as pressões imobiliárias, há grande risco de que se degrade o ambiente de entorno antes de qualquer revisão do Plano Diretor (como propõe o texto) ou de definição posterior da Zona de Amortecimento. O ideal seria estabelecer a Zona de Amortecimento e seu regramento junto com a criação do Parque.



Neste contexto, algumas perguntas pairam sem respostas: a) Qual é a área total prioritária para conservação do Cerrado na região sul da cidade? Por que só destinam 30 hectares para o Parque? b) Quais são as áreas de conexão do Parque do Cerrado com os remanescentes de Cerrado na região Sul? c) Como estes corredores e os outros remanescentes serão protegidos? O que garante esta proteção, desde já?

O mundo caminha para mudanças transformadoras e a resiliência das cidades dependerá em grande monta, da capacidade de conservar ambientes naturais e ampliar as áreas sob proteção e restauração. Precisamos de um parque com dimensões muito maiores que os parcos 30 hectares destinados pelo município. Uma área cuja proteção inclua os corredores ecológicos e a ligação com diversos outros remanescentes de Cerrado ainda existentes. Afinal somos São José dos Campos de Cerrado. Ou não...?

domingo, 12 de dezembro de 2021

De marias e desafios... Ou: outubro é rosa... E tem espinhos...

Foi num dos poucos dias em que o inverno se manifestou este ano que Maria começou a entender melhor seus desafios próximos. O tempo, chuvoso e frio, aumentava a sensação de finitude e vazio quando se deparou com o resultado da ressonância realizada poucos dias antes. O exame refletia o que o ginecologista já previra, embora não tivesse expressado: um nódulo, possivelmente maligno, em sua mama direita. Diversas coisas vieram à cabeça naquele momento, como um turbilhão: “e se eu não tivesse protelado o exame anual?”, “mas o fiz por conta da pandemia”, “como eu, que não tenho nenhum caso na família?”, “ah, meu Deus, e como ficarão meus filhos?”, “devo contar pra minha mãe? Como ela reagiria a esta altura da vida?”, “mas não há de ser nada... E se for?”, “bom, o que tiver que ser será, e vou enfrentar isso!”.

Maria é funcionária pública. Graduada em Economia, seu salário está no terço superior do setor público federal, embora bem distante do topo da lista. O suficiente para uma vida relativamente tranquila, com contas em dia, sem extravagâncias. Os dois filhos pesam no orçamento, ainda que dividido com seu companheiro. Escola particular e plano de saúde privado, indicadores da boa condição econômica familiar, embora o plano seja um fardo todo mês. Afinal, com a política de estado mínimo, não há mais plano de saúde contratado pelo empregador (no caso, o estado) e dividido, com custos baixos, para benefício dos empregados. Por outro lado, para fugir da regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), um agente regulador que atualmente pouco (ou nada?) regula, as empresas de planos de saúde passaram a se concentrar na venda de planos coletivos, cujos aumentos anuais (sempre bem maiores que a inflação) não passam pelo curto radar da regulação. Resultado: nos últimos 4 anos, o plano de Maria dobrou seu custo mensal. Um fardo!

Em algum outro lugar da cidade, outra Maria recebia diagnóstico parecido, mas por meio diferente. Era o próprio médico quem dava a notícia, afinal, Maria, embora estivesse com o laudo na mão, não sabia ler. Ainda assim, metódica e preocupada, tentava manter uma rotina anual de exames, esbarrando muitas vezes nas dificuldades de uma simples marcação de consulta. Com a pandemia então, as consultas e procedimentos no posto de saúde mais próximos foram suspensos. O médico a lhe dar a notícia não foi o mesmo que sugeriu o exame, que havia sido solicitado há mais de 1 ano. Maria estava surpresa: “como assim Doutor? O último exame não deu nada... Fiz no SUS”.


O SUS (Sistema Único de Saúde) é um sistema impressionante por suas dimensões e cobertura. Foi responsável pela melhoria de diversos indicadores de saúde no país, desde sua implantação, em 1988, a partir da Constituição. Sem ele, não teríamos erradicado algumas doenças crônicas do país. Com ele, tratamentos de altíssima complexidade são possíveis. No entanto, este acrônimo ainda é uma estampa das condições desiguais que conformam a saúde no Brasil.

Maria mora em uma área de ocupação irregular, na periferia da cidade. É diarista e depende deste trabalho para manter os 2 filhos, sozinha. Por sorte conseguiu vaga para as crianças em uma escola pública próxima – foi difícil que aceitassem sua condição de moradora em área irregular, mas a Defensoria Pública ajudou. Conseguia completar o parco orçamento familiar com o tal Bolsa Família. Para ser atendida no posto de saúde, não teve problemas com o registro, o problema ali sempre foi a demora para conseguir uma consulta. Com a pandemia, diminuíram os pedidos de limpeza doméstica. O auxílio emergencial foi essencial para ter o que comer nesse período.

Para Maria, a primeira, da consulta anual, atrasada em 3 meses por conta do receio com a exposição na pandemia, até o diagnóstico final, foram uma mamografia, uma ultrassonografia, uma ressonância magnética e uma biópsia, tudo isso em 3 semanas (nessas horas, alguns planos de saúde privados funcionam!). O atraso da pandemia poderia ter tido um custo alto: a mamografia e a ultrassonografia não acusaram o tumor. Foi graças à insistência do médico, pelo exame clínico, e sua experiência, que se exigiu exame mais preciso. O tumor crescera consideravelmente nos 3 últimos meses!

Para o médico da outra Maria, as coisas estavam um pouco mais claras do que para a paciente: a última mamografia era de 2 anos atrás, e de fato o laudo não indicava nada muito ruim, mas o médico na ocasião sugeriu o acompanhamento com novo exame em 6 meses. Maria só conseguira nova consulta um ano depois. O tumor já havia crescido. O médico de então, outro rosto novo para Maria, pediu uma ultrassonografia. Mais um ano... O resultado confirmara o tumor. “Dona Maria, vamos pedir uma biópsia. Vou solicitar urgência desta vez”. Mais 6 meses e finalmente o diagnóstico: câncer invasivo metastático na mama direita.

As piores sensações, para a economista, duraram pouco. A primavera chegou com profusão de flores e cores. Em anos de crise hídrica, as florações geralmente são mais exuberantes. É uma forma de garantir, com mais flores e frutos, a sobrevivência da espécie em momentos difíceis. Com apoio familiar e uma autoestima peculiar, passou a enfrentar os desafios de maneira tranquila e confiante. Seu tratamento envolveria uma cirurgia para extração do nódulo, e de linfonodos ligados a este, com uma técnica avançada, sem necessidade de retirada da mama. O tratamento seguiria com a quimioterapia, se um teste realizado nos EUA assim indicasse, radioterapia e hormonoterapia. Em alguns meses, tudo resolvido! Bom, não sem antes alguns percalços: os excelentes médicos indicados para Maria não estavam na cobertura de seu plano de saúde. O teste nos EUA, embora seu resultado possa evitar a quimioterapia em alguns casos (estima-se em até 70% para alguns tipos de câncer menos invasivos), também não é coberto pelo plano (lógica curiosa estas dos planos: o tal teste tem custo alto, mas bem menor do que o custo da própria quimioterapia, que poderia ser evitada em muitos casos). Ufa! Maria  tinha suas economias. E conseguiu realizar estes custos à parte. Infelizmente, o teste dos EUA não foi muito resoluto para seu caso: há que fazer quimioterapia, just in case! Por sorte (sim, no Brasil parece mesmo questão de “sorte”), o plano cobre a quimioterapia... Aliás, o universo oncológico é amplo: hoje, para os do andar de cima, junto à quimioterapia há um pacote de medicamentos de apoio, cujo custo é da mesma ordem dos quimioterápicos, não à toa chamado por alguns de “kit do bem estar”: sem náusea, sem dores, sem queda de imunidade, e até, nos casos mais brandos, sem queda (ou com queda reduzida) de cabelos!

Maria diarista tivera uma vida mais difícil. As notícias piores vieram na primavera. Extraiu a mama por completo, e mais uma porção de linfonodos, cirurgia realizada pelo SUS (sim, com todos os atrasos, desde o diagnóstico até a cirurgia, é ainda um alento saber que é possível ter o tratamento sem custos pelo serviço público). A recuperação foi mais longa e dolorida. Adentrou o verão, que chegou com extremos climáticos. Alguns familiares tiveram casas afetadas por deslizamentos, bem próximos à sua. Casa cheia com parentes abrigados. O tal teste dos EUA não está na lista de procedimentos do SUS, portanto, a diarista teve que fazer quimioterapia, sem opção (repetindo: o custo da quimioterapia é bem maior que o do teste e, para alguns tipos, o teste poderia indicar a não necessidade de quimioterapia em até 70% dos casos – uma situação típica para análise de investimento em saúde pública!). A quimioterapia coberta pelo SUS não abrange o “kit bem estar” completo, e, diante do quadro evoluído do câncer, sua dose de quimioterápicos foi bem maior! Pobre Maria... Vivenciou todas as agruras da injeção de químicos potentes em suas veias, com todos seus efeitos colaterais, da perda total dos cabelos às náuseas frequentes e prostração, que quase a levou a um quadro depressivo. Mas ela é de rocha! Enfrentou tudo e hoje está potencialmente curada.

O outono chegou sem se anunciar. Tudo indica que será mais quente e seco, apesar das chuvas de março que insistem em desaguar tanto em tão pouco tempo. Ambas as Marias passam bem, cada qual à sua maneira e possibilidades, sujeitas agora às próximas desventuras e alegrias...


Para saber mais:

- Sobre planos de saúde e a ausência de regulação:

https://idec.org.br/noticia/reajustes-deixam-planos-de-saude-ate-50-mais-caros-faca-seu-calculo

- Sobre teste para avaliar necessidade de quimioterapia em alguns casos de câncer de mama:

https://www.femama.org.br/site/br/noticia/teste-genetico-dispensa-quimioterapia-em-mulheres-de-hospital-de-sp

- Sobre o SUS:

SUS - https://pensesus.fiocruz.br/sus

- Sobre o SUS e a melhoria da Saúde Pública no país: 

https://www.scielosp.org/article/sdeb/2017.v41n113/500-512/

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Política de sinais contrários: o problema da informação errática em tempos de pandemia


O Brasil atinge o terceiro mês sob a COVID-19 nas primeiras posições do mundo em termos de casos e óbitos. E, ao que tudo indica, continuamos em curva ascendente da doença, com consequências ainda mais trágicas para as próximas semanas. Gostaria de salientar dois aspectos importantes a analisar a partir dos números consolidados da doença ao longo do tempo. O primeiro diz respeito à propagação da doença seguindo um padrão característico: a existência de um patamar inicial, no qual a disseminação da doença é mais rápida onde a desigualdade é menor, e um segundo momento, no qual países mais desiguais demonstram mais dificuldade de controle da doença, com escalada de casos. Esta hipótese, se comprovada, explicaria um fenômeno vivido no Brasil, especialmente nas capitais menos conectadas ao tráfego internacional (vetor inicial da disseminação da doença) e cidades de médio e grande porte no interior do país. A doença chega pelas classes mais abastadas e quanto maior a desigualdade, mais tempo ela leva para atingir índices de transmissão comunitária efetivos nos extratos menos favorecidos da população. Este lapso de tempo é crucial na percepção de risco e na adoção e manutenção de medidas de contenção da doença. Voltaremos a este ponto mais adiante.

O outro aspecto é o da comunicação e informação oficial, de Estado, sobre a doença e as formas de contenção. Sabemos que o país opera um regime federativo, com municípios, estados e união com autonomias subjacentes, e eleições diretas para cada nível, de maneira intercalada. Isso implica em divisões e alinhamentos políticos diversos, conforme a conjuntura, em cada instância administrativa. Um cenário de polarização política extrema, como o que vivemos, pode ampliar os impactos de uma pandemia, a depender da forma como cada ente político se comporta neste sistema federativo.


Este artigo foi originalmente publicado no portal Terapia Política (www.terapiapolitica.com.br) em 17/06/2020. Para continuar a leitura, acesse:

https://terapiapolitica.com.br/2020/06/17/politica-de-sinais-contrarios-o-problema-da-informacao-erratica-em-tempos-de-pandemia/

A desigualdade mora ao lado ou de como um vírus escancara o fosso social brasileiro

O advento da COVID-19 tem impactado vários países de maneiras diferentes, assim como diferentes têm sido as estratégias adotadas para lidar com a doença. Dentre posicionamentos políticos, iniciativas, estratégias, e seus resultados, duas percepções chamam a atenção em meio à pandemia: a dificuldade que governos com viés autoritário têm em lidar com a doença, e a desigualdade entre cidadãos quanto à resiliência em relação à mesma. De certa maneira, ambas influenciam, isoladamente ou de modo sinérgico, o grau com que um ou outro país tem sido afetado pela pandemia. Via de regra, a questão do autoritarismo se apresenta já nos estágios iniciais, a partir da identificação dos primeiros casos, e está diretamente associada ao menosprezo à ciência, à baixa transparência em relação aos números da doença, e ao diversionismo nas tratativas de comunicação com a sociedade. Dependendo da forma, pode inclusive induzir populações à adoção de medidas questionáveis, como o uso de um ou outro medicamento sem eficácia comprovada, ou até mesmo a uma exposição mais arriscada à doença. Já a desigualdade é trazida a lume um pouco mais adiante, quando a doença, já em franca disseminação, atinge as parcelas socialmente mais vulneráveis das populações. O caso brasileiro é um exemplo do pior tipo, tendo sido o país palco tanto dos arroubos autoritários de um clã político ideológico extremado, quanto da desigualdade alavancada nos últimos anos e que pode atingir proporções abissais com a pandemia. Embora a questão política seja por si só um chamariz à discussão, e certamente há muitos tratando disso neste momento, gostaria de me concentrar aqui no segundo ponto, a questão da desigualdade, contribuindo para elucidar alguns modos de como esta é, ou não, percebida em meio à pandemia, especialmente no que tange ao acesso da população aos equipamentos de saúde, mas também sobre outros aspectos correlatos, sem a menor pretensão de exaurir o assunto.
Este artigo foi originalmente publicado no portal Terapia Política (www.terapiapolitica.com.br) em 12/06/2020. Para continuar a leitura, acesse: