quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

São José dos Campos (de Cerrado)... Ou São José dos Extintos Campos ?

A criação de um Parque Natural Municipal, em diversas situações, seria motivo de grande alegria para a população. Este seria o espírito esperado de um anúncio como o da criação do Parque Natural Municipal do Cerrado em São José dos Campos/SP. No entanto, a iniciativa gera muito mais preocupação do que alegria.

Em primeiro lugar, porque tal parque está sendo anunciado sem que esteja concluído o Plano Municipal de Mata Atlântica e Cerrado (PMMAC), o qual deveria estabelecer diretrizes para a conservação destes ambientes no município. Inclusive qual seria o regramento para estabelecer zonas de amortecimento e corredores a partir dos remanescentes de Mata Atlântica e Cerrado. O PMMAC teve sua elaboração iniciada no Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) em 2019, mas até o momento a Prefeitura não apresentou a versão final, para debate público.

Voltando alguns passos na história recente, esta mesma gestão SUPRIMIU, por ocasião da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (vulgo Lei do Zoneamento, promulgada em 2019), 1.036 hectares de Zonas de Proteção Ambiental na mesma região. Esta área garantia minimamente a proteção de mais de 500 hectares em remanescentes de Cerrado (incluindo os famosos “campos”), além de estar toda inserida sobre área de recarga de aquíferos, cuja preservação é fundamental para a garantia da segurança hídrica na cidade. Sim, estes são os números! Suprimiu 1.036 hectares de proteção e agora propõe proteger um pequeno recorte de 30 hectares.

Mas isso não é tudo. Um dos principais fatores de proteção para a área a ser criada é o regramento dos usos em seu entorno, a chamada Zona de Amortecimento. Esta é tão importante quanto o parque, ainda mais quando se trata de uma área de proteção tão pequena para uma mostra tão preciosa do Cerrado joseense. A proposta apenas aponta algumas possíveis diretrizes, postergando a definição da zona de amortecimento. Dado o grau de ocupação atual na região e as pressões imobiliárias, há grande risco de que se degrade o ambiente de entorno antes de qualquer revisão do Plano Diretor (como propõe o texto) ou de definição posterior da Zona de Amortecimento. O ideal seria estabelecer a Zona de Amortecimento e seu regramento junto com a criação do Parque.



Neste contexto, algumas perguntas pairam sem respostas: a) Qual é a área total prioritária para conservação do Cerrado na região sul da cidade? Por que só destinam 30 hectares para o Parque? b) Quais são as áreas de conexão do Parque do Cerrado com os remanescentes de Cerrado na região Sul? c) Como estes corredores e os outros remanescentes serão protegidos? O que garante esta proteção, desde já?

O mundo caminha para mudanças transformadoras e a resiliência das cidades dependerá em grande monta, da capacidade de conservar ambientes naturais e ampliar as áreas sob proteção e restauração. Precisamos de um parque com dimensões muito maiores que os parcos 30 hectares destinados pelo município. Uma área cuja proteção inclua os corredores ecológicos e a ligação com diversos outros remanescentes de Cerrado ainda existentes. Afinal somos São José dos Campos de Cerrado. Ou não...?

domingo, 12 de dezembro de 2021

De marias e desafios... Ou: outubro é rosa... E tem espinhos...

Foi num dos poucos dias em que o inverno se manifestou este ano que Maria começou a entender melhor seus desafios próximos. O tempo, chuvoso e frio, aumentava a sensação de finitude e vazio quando se deparou com o resultado da ressonância realizada poucos dias antes. O exame refletia o que o ginecologista já previra, embora não tivesse expressado: um nódulo, possivelmente maligno, em sua mama direita. Diversas coisas vieram à cabeça naquele momento, como um turbilhão: “e se eu não tivesse protelado o exame anual?”, “mas o fiz por conta da pandemia”, “como eu, que não tenho nenhum caso na família?”, “ah, meu Deus, e como ficarão meus filhos?”, “devo contar pra minha mãe? Como ela reagiria a esta altura da vida?”, “mas não há de ser nada... E se for?”, “bom, o que tiver que ser será, e vou enfrentar isso!”.

Maria é funcionária pública. Graduada em Economia, seu salário está no terço superior do setor público federal, embora bem distante do topo da lista. O suficiente para uma vida relativamente tranquila, com contas em dia, sem extravagâncias. Os dois filhos pesam no orçamento, ainda que dividido com seu companheiro. Escola particular e plano de saúde privado, indicadores da boa condição econômica familiar, embora o plano seja um fardo todo mês. Afinal, com a política de estado mínimo, não há mais plano de saúde contratado pelo empregador (no caso, o estado) e dividido, com custos baixos, para benefício dos empregados. Por outro lado, para fugir da regulação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), um agente regulador que atualmente pouco (ou nada?) regula, as empresas de planos de saúde passaram a se concentrar na venda de planos coletivos, cujos aumentos anuais (sempre bem maiores que a inflação) não passam pelo curto radar da regulação. Resultado: nos últimos 4 anos, o plano de Maria dobrou seu custo mensal. Um fardo!

Em algum outro lugar da cidade, outra Maria recebia diagnóstico parecido, mas por meio diferente. Era o próprio médico quem dava a notícia, afinal, Maria, embora estivesse com o laudo na mão, não sabia ler. Ainda assim, metódica e preocupada, tentava manter uma rotina anual de exames, esbarrando muitas vezes nas dificuldades de uma simples marcação de consulta. Com a pandemia então, as consultas e procedimentos no posto de saúde mais próximos foram suspensos. O médico a lhe dar a notícia não foi o mesmo que sugeriu o exame, que havia sido solicitado há mais de 1 ano. Maria estava surpresa: “como assim Doutor? O último exame não deu nada... Fiz no SUS”.


O SUS (Sistema Único de Saúde) é um sistema impressionante por suas dimensões e cobertura. Foi responsável pela melhoria de diversos indicadores de saúde no país, desde sua implantação, em 1988, a partir da Constituição. Sem ele, não teríamos erradicado algumas doenças crônicas do país. Com ele, tratamentos de altíssima complexidade são possíveis. No entanto, este acrônimo ainda é uma estampa das condições desiguais que conformam a saúde no Brasil.

Maria mora em uma área de ocupação irregular, na periferia da cidade. É diarista e depende deste trabalho para manter os 2 filhos, sozinha. Por sorte conseguiu vaga para as crianças em uma escola pública próxima – foi difícil que aceitassem sua condição de moradora em área irregular, mas a Defensoria Pública ajudou. Conseguia completar o parco orçamento familiar com o tal Bolsa Família. Para ser atendida no posto de saúde, não teve problemas com o registro, o problema ali sempre foi a demora para conseguir uma consulta. Com a pandemia, diminuíram os pedidos de limpeza doméstica. O auxílio emergencial foi essencial para ter o que comer nesse período.

Para Maria, a primeira, da consulta anual, atrasada em 3 meses por conta do receio com a exposição na pandemia, até o diagnóstico final, foram uma mamografia, uma ultrassonografia, uma ressonância magnética e uma biópsia, tudo isso em 3 semanas (nessas horas, alguns planos de saúde privados funcionam!). O atraso da pandemia poderia ter tido um custo alto: a mamografia e a ultrassonografia não acusaram o tumor. Foi graças à insistência do médico, pelo exame clínico, e sua experiência, que se exigiu exame mais preciso. O tumor crescera consideravelmente nos 3 últimos meses!

Para o médico da outra Maria, as coisas estavam um pouco mais claras do que para a paciente: a última mamografia era de 2 anos atrás, e de fato o laudo não indicava nada muito ruim, mas o médico na ocasião sugeriu o acompanhamento com novo exame em 6 meses. Maria só conseguira nova consulta um ano depois. O tumor já havia crescido. O médico de então, outro rosto novo para Maria, pediu uma ultrassonografia. Mais um ano... O resultado confirmara o tumor. “Dona Maria, vamos pedir uma biópsia. Vou solicitar urgência desta vez”. Mais 6 meses e finalmente o diagnóstico: câncer invasivo metastático na mama direita.

As piores sensações, para a economista, duraram pouco. A primavera chegou com profusão de flores e cores. Em anos de crise hídrica, as florações geralmente são mais exuberantes. É uma forma de garantir, com mais flores e frutos, a sobrevivência da espécie em momentos difíceis. Com apoio familiar e uma autoestima peculiar, passou a enfrentar os desafios de maneira tranquila e confiante. Seu tratamento envolveria uma cirurgia para extração do nódulo, e de linfonodos ligados a este, com uma técnica avançada, sem necessidade de retirada da mama. O tratamento seguiria com a quimioterapia, se um teste realizado nos EUA assim indicasse, radioterapia e hormonoterapia. Em alguns meses, tudo resolvido! Bom, não sem antes alguns percalços: os excelentes médicos indicados para Maria não estavam na cobertura de seu plano de saúde. O teste nos EUA, embora seu resultado possa evitar a quimioterapia em alguns casos (estima-se em até 70% para alguns tipos de câncer menos invasivos), também não é coberto pelo plano (lógica curiosa estas dos planos: o tal teste tem custo alto, mas bem menor do que o custo da própria quimioterapia, que poderia ser evitada em muitos casos). Ufa! Maria  tinha suas economias. E conseguiu realizar estes custos à parte. Infelizmente, o teste dos EUA não foi muito resoluto para seu caso: há que fazer quimioterapia, just in case! Por sorte (sim, no Brasil parece mesmo questão de “sorte”), o plano cobre a quimioterapia... Aliás, o universo oncológico é amplo: hoje, para os do andar de cima, junto à quimioterapia há um pacote de medicamentos de apoio, cujo custo é da mesma ordem dos quimioterápicos, não à toa chamado por alguns de “kit do bem estar”: sem náusea, sem dores, sem queda de imunidade, e até, nos casos mais brandos, sem queda (ou com queda reduzida) de cabelos!

Maria diarista tivera uma vida mais difícil. As notícias piores vieram na primavera. Extraiu a mama por completo, e mais uma porção de linfonodos, cirurgia realizada pelo SUS (sim, com todos os atrasos, desde o diagnóstico até a cirurgia, é ainda um alento saber que é possível ter o tratamento sem custos pelo serviço público). A recuperação foi mais longa e dolorida. Adentrou o verão, que chegou com extremos climáticos. Alguns familiares tiveram casas afetadas por deslizamentos, bem próximos à sua. Casa cheia com parentes abrigados. O tal teste dos EUA não está na lista de procedimentos do SUS, portanto, a diarista teve que fazer quimioterapia, sem opção (repetindo: o custo da quimioterapia é bem maior que o do teste e, para alguns tipos, o teste poderia indicar a não necessidade de quimioterapia em até 70% dos casos – uma situação típica para análise de investimento em saúde pública!). A quimioterapia coberta pelo SUS não abrange o “kit bem estar” completo, e, diante do quadro evoluído do câncer, sua dose de quimioterápicos foi bem maior! Pobre Maria... Vivenciou todas as agruras da injeção de químicos potentes em suas veias, com todos seus efeitos colaterais, da perda total dos cabelos às náuseas frequentes e prostração, que quase a levou a um quadro depressivo. Mas ela é de rocha! Enfrentou tudo e hoje está potencialmente curada.

O outono chegou sem se anunciar. Tudo indica que será mais quente e seco, apesar das chuvas de março que insistem em desaguar tanto em tão pouco tempo. Ambas as Marias passam bem, cada qual à sua maneira e possibilidades, sujeitas agora às próximas desventuras e alegrias...


Para saber mais:

- Sobre planos de saúde e a ausência de regulação:

https://idec.org.br/noticia/reajustes-deixam-planos-de-saude-ate-50-mais-caros-faca-seu-calculo

- Sobre teste para avaliar necessidade de quimioterapia em alguns casos de câncer de mama:

https://www.femama.org.br/site/br/noticia/teste-genetico-dispensa-quimioterapia-em-mulheres-de-hospital-de-sp

- Sobre o SUS:

SUS - https://pensesus.fiocruz.br/sus

- Sobre o SUS e a melhoria da Saúde Pública no país: 

https://www.scielosp.org/article/sdeb/2017.v41n113/500-512/