segunda-feira, 20 de julho de 2020

Política de sinais contrários: o problema da informação errática em tempos de pandemia


O Brasil atinge o terceiro mês sob a COVID-19 nas primeiras posições do mundo em termos de casos e óbitos. E, ao que tudo indica, continuamos em curva ascendente da doença, com consequências ainda mais trágicas para as próximas semanas. Gostaria de salientar dois aspectos importantes a analisar a partir dos números consolidados da doença ao longo do tempo. O primeiro diz respeito à propagação da doença seguindo um padrão característico: a existência de um patamar inicial, no qual a disseminação da doença é mais rápida onde a desigualdade é menor, e um segundo momento, no qual países mais desiguais demonstram mais dificuldade de controle da doença, com escalada de casos. Esta hipótese, se comprovada, explicaria um fenômeno vivido no Brasil, especialmente nas capitais menos conectadas ao tráfego internacional (vetor inicial da disseminação da doença) e cidades de médio e grande porte no interior do país. A doença chega pelas classes mais abastadas e quanto maior a desigualdade, mais tempo ela leva para atingir índices de transmissão comunitária efetivos nos extratos menos favorecidos da população. Este lapso de tempo é crucial na percepção de risco e na adoção e manutenção de medidas de contenção da doença. Voltaremos a este ponto mais adiante.

O outro aspecto é o da comunicação e informação oficial, de Estado, sobre a doença e as formas de contenção. Sabemos que o país opera um regime federativo, com municípios, estados e união com autonomias subjacentes, e eleições diretas para cada nível, de maneira intercalada. Isso implica em divisões e alinhamentos políticos diversos, conforme a conjuntura, em cada instância administrativa. Um cenário de polarização política extrema, como o que vivemos, pode ampliar os impactos de uma pandemia, a depender da forma como cada ente político se comporta neste sistema federativo.


Este artigo foi originalmente publicado no portal Terapia Política (www.terapiapolitica.com.br) em 17/06/2020. Para continuar a leitura, acesse:

https://terapiapolitica.com.br/2020/06/17/politica-de-sinais-contrarios-o-problema-da-informacao-erratica-em-tempos-de-pandemia/

A desigualdade mora ao lado ou de como um vírus escancara o fosso social brasileiro

O advento da COVID-19 tem impactado vários países de maneiras diferentes, assim como diferentes têm sido as estratégias adotadas para lidar com a doença. Dentre posicionamentos políticos, iniciativas, estratégias, e seus resultados, duas percepções chamam a atenção em meio à pandemia: a dificuldade que governos com viés autoritário têm em lidar com a doença, e a desigualdade entre cidadãos quanto à resiliência em relação à mesma. De certa maneira, ambas influenciam, isoladamente ou de modo sinérgico, o grau com que um ou outro país tem sido afetado pela pandemia. Via de regra, a questão do autoritarismo se apresenta já nos estágios iniciais, a partir da identificação dos primeiros casos, e está diretamente associada ao menosprezo à ciência, à baixa transparência em relação aos números da doença, e ao diversionismo nas tratativas de comunicação com a sociedade. Dependendo da forma, pode inclusive induzir populações à adoção de medidas questionáveis, como o uso de um ou outro medicamento sem eficácia comprovada, ou até mesmo a uma exposição mais arriscada à doença. Já a desigualdade é trazida a lume um pouco mais adiante, quando a doença, já em franca disseminação, atinge as parcelas socialmente mais vulneráveis das populações. O caso brasileiro é um exemplo do pior tipo, tendo sido o país palco tanto dos arroubos autoritários de um clã político ideológico extremado, quanto da desigualdade alavancada nos últimos anos e que pode atingir proporções abissais com a pandemia. Embora a questão política seja por si só um chamariz à discussão, e certamente há muitos tratando disso neste momento, gostaria de me concentrar aqui no segundo ponto, a questão da desigualdade, contribuindo para elucidar alguns modos de como esta é, ou não, percebida em meio à pandemia, especialmente no que tange ao acesso da população aos equipamentos de saúde, mas também sobre outros aspectos correlatos, sem a menor pretensão de exaurir o assunto.
Este artigo foi originalmente publicado no portal Terapia Política (www.terapiapolitica.com.br) em 12/06/2020. Para continuar a leitura, acesse:

São José dos Campos: o paradoxo da modernidade. Ou: de que sustentabilidade vocês estão falando?


Os recentes embates em torno da nova lei de zoneamento para o município expõem um notável paradoxo que permeia a cena joseense pelo menos nas últimas duas décadas. O passado sanatorial e hidromineral, além do assentamento industrial da segunda metade do século XX, fizeram a base que permitiu o modelo urbanístico atual, de vias largas, bairros planejados para a qualidade de vida, como o Jardim Esplanada, Jardim Apollo, residenciais e amplamente arborizados, os quais serviram de referência até mesmo para as regiões criadas em torno de aglomerações industriais, como o Jardim Satélite e Bosque dos Eucaliptos e o Jardim das Indústrias, sem falar no próprio CTA, com projeto de Niemeyer. São José dos Campos, definitivamente, ganhara ares de modernidade.

Entretanto, com o passar do tempo, e o aumento do protagonismo do município na região, os interesses econômicos e políticos foram se organizando e acomodando de tal maneira que passaram a gerar barreiras à formulação de visão de futuro da cidade a partir de um amplo diálogo com a sociedade. O poder institucional para a definição do plano urbanístico futuro e de seu regramento (o zoneamento), que teria na Prefeitura um elo e na Câmara dos Vereadores a possibilidade de se exercer contrapontos e contemplar os interesses legítimos da sociedade no regramento, tem sido monocrático: o que vem do executivo é acatado simplesmente pelo legislativo, numa subserviência inadequada à expressão da cidadania. A absoluta ausência de diálogo com a sociedade (os áudios das audiências públicas, nas quais a insatisfação da cidadania foi notável, porém em vão, comprova isso) e a incorporação de interesses quase exclusivos da indústria imobiliária na proposta de zoneamento municipal são elementos que excluem da visão de futuro temas como a redução da poluição, a melhoria da mobilidade urbana, a sustentabilidade, a resiliência do município às mudanças do clima e a justiça social, que passam a ser objetos de manifesto de grupos de cidadãos, preocupados com a qualidade de vida no futuro próximo.

Prefeitura e Câmara refletem, assim, um modelo de governança atrasado, provinciano, muito aquém do que vigorara décadas atrás. Longe de ser uma cidade de vanguarda, São José dos Campos pode vir a incorporar elementos urbanísticos do que há de mais atrasado na cena mundial.

A seguir, apresento algumas dos problemas associados à nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (ou simplesmente Lei de Zoneamento), promulgada em 2019. De antemão, esta aumenta a vulnerabilidade climática do município, expondo a risco os cidadãos, pois:
  • Permite a redução significativa de remanescentes de vegetação de Cerrado no município, ao retirar o caráter de Zona de Proteção Ambiental destas áreas;
  • Permite a redução do caráter de proteção de áreas fundamentais para a recarga de aquíferos no município e na bacia do rio Paraíba do Sul;
  • Reduz sensivelmente a resiliência do município, e da região, frente a possíveis cenários de extremos climáticos, que podem se apresentar como secas críticas até chuvas intensas, e aumento de temperatura, ao permitir a redução de áreas verdes no núcleo urbano consolidado, com aumento dos coeficientes de impermeabilização nestas zonas.
É importante ressaltar que o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) do município, recentemente aprovado (Lei Complementar 612, de 30/11/2018), privilegiou a verticalização, permitida a partir da adoção de coeficientes máximos de aproveitamento) e o adensamento ainda maior de áreas cuja ocupação está consolidada, em detrimento de manutenção e criação de áreas verdes e espaços livres de ocupação, que garantiriam maior resiliência da cidade à fenômenos climáticos extremos, amortização da poluição atmosférica e também maior qualidade de vida à população. A carência destes elementos no PDDI amplia a importância da Lei de Zoneamento (Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo - LPUOS) para a proteção de áreas relevantes para a qualidade de vida e resiliência da cidade.

Em síntese, a LPUOS determinou perdas urbanísticas importantes para a sustentabilidade, permitindo, dentre outros, a redução da área mínima de diversas categorias de loteamentos, o que aumenta o parcelamento e reduz as áreas verdes, além de alterar significativamente a proteção ambiental no município. 

No que diz respeito às Zonas de Proteção Ambiental, ZPA1 e ZPA2, estas representam um dos principais elementos de interface ambiental na Lei de Zoneamento e garantem, minimamente, a conservação ambiental em áreas consideradas importantes e estratégicas para o município, especialmente quando localizadas em área urbana consolidada ou em consolidação.

A nova Lei de Zoneamento simplesmente SUPRIMIU estas áreas das partes mais sensíveis do tecido urbano, substituindo-as por ZPE (Zona de Planejamento Específico) e ZUPI (Zona de Uso Predominante Industrial). É uma área equivalente a mais de 1.000 campos de futebol, antes destinada à proteção ambiental, agora sujeita a novos loteamentos residenciais e industriais, como ilustrado na Figura 1.

Figura 1. ZPAs na versão anterior (esquerda) e atual (direita). Circuladas (em vermelho) as áreas suprimidas na região sul e sudeste da cidade.

A conservação destas áreas é necessária, seja por seus atributos biológicos (remanescentes de Cerrado), seja por atributos físicos e geológicos (adensamento de fraturas e recarga de aquíferos), seja por aspectos paisagísticos, seja por questões associadas à saúde pública e à resiliência da cidade. 

Nos planos urbanísticos de cidades mais avançadas, as soluções baseadas na natureza, por vezes chamada de infraestrutura verde, são peças chave para a qualidade de vida e a resiliência climática. Atualmente estamos perdendo tal capacidade, justamente por desconfigurar parte importante desta rede natural, que poderá nos fazer falta num futuro próximo. Somem-se a isso uma desastrada gestão da arborização urbana e a completa ausência de investimentos em mobilidade urbana sustentável (aqui ainda se privilegia o transporte individual motorizado), dentre outros fatores, e percebe-se o quão involuímos no quesito sustentabilidade.

Assim se consolida o paradoxo da falsa modernidade da gestão municipal joseense: apoiada em uma verve tecnológica (e “moderna”), a propaganda governamental esconde o que há de mais atrasado no plano urbanístico e de sustentabilidade. Importa mais colocar a cidade à venda, em detrimento de torná-la uma cidade voltada para a qualidade de vida, com inclusão e sustentabilidade.