segunda-feira, 20 de julho de 2020

São José dos Campos: o paradoxo da modernidade. Ou: de que sustentabilidade vocês estão falando?


Os recentes embates em torno da nova lei de zoneamento para o município expõem um notável paradoxo que permeia a cena joseense pelo menos nas últimas duas décadas. O passado sanatorial e hidromineral, além do assentamento industrial da segunda metade do século XX, fizeram a base que permitiu o modelo urbanístico atual, de vias largas, bairros planejados para a qualidade de vida, como o Jardim Esplanada, Jardim Apollo, residenciais e amplamente arborizados, os quais serviram de referência até mesmo para as regiões criadas em torno de aglomerações industriais, como o Jardim Satélite e Bosque dos Eucaliptos e o Jardim das Indústrias, sem falar no próprio CTA, com projeto de Niemeyer. São José dos Campos, definitivamente, ganhara ares de modernidade.

Entretanto, com o passar do tempo, e o aumento do protagonismo do município na região, os interesses econômicos e políticos foram se organizando e acomodando de tal maneira que passaram a gerar barreiras à formulação de visão de futuro da cidade a partir de um amplo diálogo com a sociedade. O poder institucional para a definição do plano urbanístico futuro e de seu regramento (o zoneamento), que teria na Prefeitura um elo e na Câmara dos Vereadores a possibilidade de se exercer contrapontos e contemplar os interesses legítimos da sociedade no regramento, tem sido monocrático: o que vem do executivo é acatado simplesmente pelo legislativo, numa subserviência inadequada à expressão da cidadania. A absoluta ausência de diálogo com a sociedade (os áudios das audiências públicas, nas quais a insatisfação da cidadania foi notável, porém em vão, comprova isso) e a incorporação de interesses quase exclusivos da indústria imobiliária na proposta de zoneamento municipal são elementos que excluem da visão de futuro temas como a redução da poluição, a melhoria da mobilidade urbana, a sustentabilidade, a resiliência do município às mudanças do clima e a justiça social, que passam a ser objetos de manifesto de grupos de cidadãos, preocupados com a qualidade de vida no futuro próximo.

Prefeitura e Câmara refletem, assim, um modelo de governança atrasado, provinciano, muito aquém do que vigorara décadas atrás. Longe de ser uma cidade de vanguarda, São José dos Campos pode vir a incorporar elementos urbanísticos do que há de mais atrasado na cena mundial.

A seguir, apresento algumas dos problemas associados à nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (ou simplesmente Lei de Zoneamento), promulgada em 2019. De antemão, esta aumenta a vulnerabilidade climática do município, expondo a risco os cidadãos, pois:
  • Permite a redução significativa de remanescentes de vegetação de Cerrado no município, ao retirar o caráter de Zona de Proteção Ambiental destas áreas;
  • Permite a redução do caráter de proteção de áreas fundamentais para a recarga de aquíferos no município e na bacia do rio Paraíba do Sul;
  • Reduz sensivelmente a resiliência do município, e da região, frente a possíveis cenários de extremos climáticos, que podem se apresentar como secas críticas até chuvas intensas, e aumento de temperatura, ao permitir a redução de áreas verdes no núcleo urbano consolidado, com aumento dos coeficientes de impermeabilização nestas zonas.
É importante ressaltar que o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) do município, recentemente aprovado (Lei Complementar 612, de 30/11/2018), privilegiou a verticalização, permitida a partir da adoção de coeficientes máximos de aproveitamento) e o adensamento ainda maior de áreas cuja ocupação está consolidada, em detrimento de manutenção e criação de áreas verdes e espaços livres de ocupação, que garantiriam maior resiliência da cidade à fenômenos climáticos extremos, amortização da poluição atmosférica e também maior qualidade de vida à população. A carência destes elementos no PDDI amplia a importância da Lei de Zoneamento (Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo - LPUOS) para a proteção de áreas relevantes para a qualidade de vida e resiliência da cidade.

Em síntese, a LPUOS determinou perdas urbanísticas importantes para a sustentabilidade, permitindo, dentre outros, a redução da área mínima de diversas categorias de loteamentos, o que aumenta o parcelamento e reduz as áreas verdes, além de alterar significativamente a proteção ambiental no município. 

No que diz respeito às Zonas de Proteção Ambiental, ZPA1 e ZPA2, estas representam um dos principais elementos de interface ambiental na Lei de Zoneamento e garantem, minimamente, a conservação ambiental em áreas consideradas importantes e estratégicas para o município, especialmente quando localizadas em área urbana consolidada ou em consolidação.

A nova Lei de Zoneamento simplesmente SUPRIMIU estas áreas das partes mais sensíveis do tecido urbano, substituindo-as por ZPE (Zona de Planejamento Específico) e ZUPI (Zona de Uso Predominante Industrial). É uma área equivalente a mais de 1.000 campos de futebol, antes destinada à proteção ambiental, agora sujeita a novos loteamentos residenciais e industriais, como ilustrado na Figura 1.

Figura 1. ZPAs na versão anterior (esquerda) e atual (direita). Circuladas (em vermelho) as áreas suprimidas na região sul e sudeste da cidade.

A conservação destas áreas é necessária, seja por seus atributos biológicos (remanescentes de Cerrado), seja por atributos físicos e geológicos (adensamento de fraturas e recarga de aquíferos), seja por aspectos paisagísticos, seja por questões associadas à saúde pública e à resiliência da cidade. 

Nos planos urbanísticos de cidades mais avançadas, as soluções baseadas na natureza, por vezes chamada de infraestrutura verde, são peças chave para a qualidade de vida e a resiliência climática. Atualmente estamos perdendo tal capacidade, justamente por desconfigurar parte importante desta rede natural, que poderá nos fazer falta num futuro próximo. Somem-se a isso uma desastrada gestão da arborização urbana e a completa ausência de investimentos em mobilidade urbana sustentável (aqui ainda se privilegia o transporte individual motorizado), dentre outros fatores, e percebe-se o quão involuímos no quesito sustentabilidade.

Assim se consolida o paradoxo da falsa modernidade da gestão municipal joseense: apoiada em uma verve tecnológica (e “moderna”), a propaganda governamental esconde o que há de mais atrasado no plano urbanístico e de sustentabilidade. Importa mais colocar a cidade à venda, em detrimento de torná-la uma cidade voltada para a qualidade de vida, com inclusão e sustentabilidade.

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