Os recentes embates em torno da nova lei de
zoneamento para o município expõem um notável paradoxo que permeia a cena
joseense pelo menos nas últimas duas décadas. O passado sanatorial e
hidromineral, além do assentamento industrial da segunda metade do século XX, fizeram
a base que permitiu o modelo urbanístico atual, de vias largas, bairros
planejados para a qualidade de vida, como o Jardim Esplanada, Jardim Apollo,
residenciais e amplamente arborizados, os quais serviram de referência até
mesmo para as regiões criadas em torno de aglomerações industriais, como o
Jardim Satélite e Bosque dos Eucaliptos e o Jardim das Indústrias, sem falar no
próprio CTA, com projeto de Niemeyer. São José dos Campos, definitivamente,
ganhara ares de modernidade.
Entretanto, com o passar do tempo, e o aumento do
protagonismo do município na região, os interesses econômicos e políticos foram
se organizando e acomodando de tal maneira que passaram a gerar barreiras à
formulação de visão de futuro da cidade a partir de um amplo diálogo com a
sociedade. O poder institucional para a definição do plano urbanístico futuro e
de seu regramento (o zoneamento), que teria na Prefeitura um elo e na Câmara
dos Vereadores a possibilidade de se exercer contrapontos e contemplar os
interesses legítimos da sociedade no regramento, tem sido monocrático: o que vem
do executivo é acatado simplesmente pelo legislativo, numa subserviência
inadequada à expressão da cidadania. A absoluta ausência de diálogo com a
sociedade (os áudios das audiências públicas, nas quais a insatisfação da
cidadania foi notável, porém em vão, comprova isso) e a incorporação de
interesses quase exclusivos da indústria imobiliária na proposta de zoneamento
municipal são elementos que excluem da visão de futuro temas como a redução da
poluição, a melhoria da mobilidade urbana, a sustentabilidade, a resiliência do
município às mudanças do clima e a justiça social, que passam a ser objetos de
manifesto de grupos de cidadãos, preocupados com a qualidade de vida no futuro
próximo.
Prefeitura e Câmara refletem, assim, um modelo de
governança atrasado, provinciano, muito aquém do que vigorara décadas atrás.
Longe de ser uma cidade de vanguarda, São José dos Campos pode vir a incorporar
elementos urbanísticos do que há de mais atrasado na cena mundial.
A seguir, apresento algumas dos problemas
associados à nova Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (ou simplesmente
Lei de Zoneamento), promulgada em 2019. De antemão, esta aumenta a vulnerabilidade
climática do município, expondo a risco os cidadãos, pois:
- Permite a redução significativa de remanescentes de vegetação de Cerrado
no município, ao retirar o caráter de Zona de Proteção Ambiental destas áreas;
- Permite a redução do caráter de proteção de
áreas fundamentais para a recarga de
aquíferos no município e na bacia do
rio Paraíba do Sul;
- Reduz
sensivelmente a resiliência do município, e da região, frente a possíveis
cenários de extremos climáticos, que podem se apresentar como secas
críticas até chuvas intensas, e aumento de temperatura, ao permitir a redução
de áreas verdes no núcleo urbano consolidado, com aumento dos coeficientes de
impermeabilização nestas zonas.
É importante ressaltar que o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) do município, recentemente aprovado (Lei Complementar 612, de 30/11/2018), privilegiou a verticalização, permitida a partir da adoção de coeficientes máximos de aproveitamento) e o adensamento ainda maior de áreas cuja ocupação está consolidada, em detrimento de manutenção e criação de áreas verdes e espaços livres de ocupação, que garantiriam maior resiliência da cidade à fenômenos climáticos extremos, amortização da poluição atmosférica e também maior qualidade de vida à população. A carência destes elementos no PDDI amplia a importância da Lei de Zoneamento (Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo - LPUOS) para a proteção de áreas relevantes para a qualidade de vida e resiliência da cidade.
Em síntese, a LPUOS determinou perdas urbanísticas importantes para a sustentabilidade, permitindo, dentre outros, a redução da área mínima de diversas categorias de loteamentos, o que aumenta o parcelamento e reduz as áreas verdes, além de alterar significativamente a proteção ambiental no município.
No que diz respeito às Zonas de
Proteção Ambiental, ZPA1 e ZPA2, estas representam um dos principais elementos
de interface ambiental na Lei de Zoneamento e garantem, minimamente, a
conservação ambiental em áreas consideradas importantes e estratégicas para o
município, especialmente quando localizadas em área urbana consolidada ou em
consolidação.
A nova Lei de Zoneamento simplesmente
SUPRIMIU estas áreas das partes mais sensíveis do tecido urbano, substituindo-as
por ZPE (Zona de Planejamento Específico) e ZUPI (Zona de Uso Predominante
Industrial). É uma área equivalente a mais de 1.000 campos de futebol, antes
destinada à proteção ambiental, agora sujeita a novos loteamentos
residenciais e industriais, como ilustrado na Figura 1.
Figura 1. ZPAs na
versão anterior (esquerda) e atual (direita). Circuladas (em vermelho) as áreas
suprimidas na região sul e sudeste da cidade.
A conservação destas áreas é necessária, seja por
seus atributos biológicos (remanescentes de Cerrado), seja por atributos
físicos e geológicos (adensamento de fraturas e recarga de aquíferos), seja por
aspectos paisagísticos, seja por questões associadas à saúde pública e à
resiliência da cidade.
Nos planos urbanísticos de cidades mais avançadas, as soluções baseadas na natureza, por vezes chamada de infraestrutura verde, são peças chave para a qualidade de vida e a resiliência climática. Atualmente estamos perdendo tal capacidade, justamente por desconfigurar parte importante desta rede natural, que poderá nos fazer falta num futuro próximo. Somem-se a isso uma desastrada gestão da arborização urbana e a completa ausência de investimentos em mobilidade urbana sustentável (aqui ainda se privilegia o transporte individual motorizado), dentre outros fatores, e percebe-se o quão involuímos no quesito sustentabilidade.
Assim se consolida o paradoxo da falsa modernidade da gestão municipal
joseense: apoiada em uma verve tecnológica (e “moderna”), a propaganda
governamental esconde o que há de mais atrasado no plano urbanístico e de
sustentabilidade. Importa mais colocar a cidade à venda, em detrimento de torná-la
uma cidade voltada para a qualidade de vida, com inclusão e sustentabilidade.